Bela & Cinderelo - A Saga Parvoíce
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rovenientes
do mesmo ventre e espaçados apenas por um punhado de ciclos lunares, dois
irmãos eram o exemplo perfeito do antagonismo. Cinderelo e Bela partilharam a
mesma herança genética, a mesma educação, os mesmos costumes, os mesmos ideais,
mas sem motivo aparente, durante a adolescência, um viria a degenerar.
Se
a Bela se tornou afável, bondosa, estimada por todos e dona de uma beleza
atordoante, já o seu irmão…deve ter-se enganado no entroncamento e tomou o
caminho oposto. Este desenvolveu uma personalidade complexa, mesquinha e
obscura. Só pensava em bens materiais e não hesitava em usar qualquer tipo de
expediente para atingir os seus intentos.
Cinderelo
trancava-se na cave dias seguidos e a sua única companhia era o seu inseparável
amigo portátil Sony Vaio. Passava o tempo a criar burlas informáticas para
enganar os mais incautos internautas e apoderar-se das palavras-passe de contas
bancária, para depois transferir para si todo o saldo. Para se recrear,
publicava comentários desagradáveis no perfil de Facebook de pessoas que não conhecia e divertia-se a ler as
respostas insultuosas que lhe replicavam. Tinha também um hábito irritante de
criar janelas de publicidade nos sítios da internet mais acedidos e estava a
aperfeiçoar a dificuldade em encerrá-las, só pelo prazer de aborrecer as
pessoas.
O
que comia ninguém sabia. A luz do sol raramente via e o contacto humano deixou
de fazer parte do seu quotidiano, preferindo o recato e isolamento que a sua
cave húmida, bolorenta e bafienta lhe proporcionavam. Lentamente estava a
decompor-se numa criatura sinistra, que a pele pálida e a sua face magra lhe
conferiam.
Da
sua boca exalava um forte cheiro a enxofre, à sua passagem as flores murchavam,
os pássaros tombavam inanimados das árvores, as crianças choravam e os vizinhos,
por receio, escondiam as pratas, os cristais e até as suas filhas. A espiral
decadente parecia cada vez maior e o seu auge era atingido nas noites ventosas,
quando o vento soprava favoravelmente do cemitério, era audível sussurro dos
defuntos clamando pelo seu nome: “Cindereeeeeeeelo, anda aqui beber umas
‘bejecas’ com a malta…”
Até
as traças, os bichos-de-conta e as baratas recusavam-se a partilhar a cave com
ele. Apesar de protestos, abaixo-assinados, greves e várias queixas ao Provedor
dos Insectos, não lhes foi dado provimento, não lhes restando outra opção senão
mudar de casa e ir parasitar outra família. Cinderelo tinha adquirido
propriedades insecticidas…
A
diferença física e comportamental entre Cinderelo e Bela e era cada vez mais
vincada e fracturante. Só a sua irmã, com toda a sua pureza de coração e
simplicidade continuava a gostar dele e estava até decidida a mudá-lo. Se um
representava o Bem o outro tinha mergulhado no mundo das Trevas.
Numa
das esporádicas subidas de Cinderelo à superfície, Bela aproveitou e fez descer
em segredo uma empregada de limpeza qua havia contratado dias antes, para dar
uma limpeza na cave e conferir alguma dignidade humana à mesma. Este pequeno
gesto de amor fraterno mudou para sempre a vida de Cinderelo…
Ao
regressar à cave, Cinderelo deparou com uma estátua de mármore de uma empregada
de limpeza em tamanho real, com um par de sapatos na mão, aparentando estar a
arrumá-los e ficou deveras intrigado com a origem daquele objecto, naquele
preciso local, que não estava ali minutos antes.
Colocou várias hipóteses, formulou várias teses e passou à fase de
experimentação. Sabendo de antemão que a chave do enigma girava em torno dos
seus sapatos, decidiu espalhar meia-dúzia de pares de calçado seu em diferentes
locais e no dia seguinte, ao analisar os resultados, estes não podiam ser mais
esclarecedores:
Mediante
a sua observação, chegou à evidente conclusão de que os seus sapatos deitavam
um cheiro tão pestilento que, quem se aproximasse o suficiente para sentir o
seu cheiro, ficava imediatamente petrificado. Ou no caso concreto, marmorizado…
Imediatamente
a mente capitalista e maquiavélica de Cinderelo pensou em obter lucro com este
seu dom artístico de “fazedor de arte em mármore”. Minutos depois, criou uma
empresa na hora, encomendou umas dezenas de máquinas de corte de mármore e
outros tantos camiões de transporte. Insonorizou as paredes, instalou as
máquinas na cave e tornou-se proprietário de uma numerosa frota de camiões de
carga.
Quanto à matéria-prima,
já se sabe…Cinderelo comprava, calçava e deixava o seu sapatinho na via
pública, para que este fizesse a sua ‘magia’ (qualquer semelhança com um conto
infantil sobejamente conhecido, é pura coincidência…ou então não!). Cedo pela
manhã, ainda os galos estavam de pijama, já Cinderelo fazia a recolha das
estátuas de mármore para proceder ao ulterior seu desmantelamento
“Cinderelo
Mármores, Unipessoal” tornou-se em poucos meses a maior exportadora mundial de
mármores, fruto dos seus preços baixos e os clientes desconheciam que aquele
chão que estariam a pisar, outrora teria sido uma pessoa, um animal ou na pior
das hipóteses, as suas próprias queridas avozinhas desaparecidas dias antes…
Numa
manhã como outra qualquer, ao passar junto a um quiosque, Bela reparou na capa
da Revista Forbes e reconheceu o seu
irmão. Cinderelo era o tema central da revista por ser o homem mais rico do
mundo. Bela ficou incrédula…
Bela
dirigiu-se imediatamente a casa, no intuito de obter explicações do seu irmão e
ao abrir a porta da cave, observou abismada a gigantesca indústria de mármores
que laborava mesmo por baixo da residência, sem que nunca se tivesse
apercebido.
Perante
a evidência, Cinderelo revelou o seu segredo, que chocou a sua irmã.
Inconsolável, Bela finalmente percebeu porque toda a vizinhança no raio de
alguns quilómetros tinha desaparecido, tornando-a juntamente com o seu irmão,
os únicos habitantes da vila. Fez-lhe então um ultimato. Ou parava com aquele
genocídio desumano ou nunca mais a voltaria a ver!
Cinderelo
chorou, por momentos tornou a ser humano e chorou de novo. Sabendo que não
conseguiria sozinho mudar de hábitos, voltou-se para Deus. Rezou e pediu ajuda
divina, dizendo que estava muito arrependido e que estaria disposto a tudo para
deixar de ser aquela criatura malévola e ter uma segunda oportunidade. Jurou
perante de Deus que se lhe desse uma oportunidade, um dia faria muitas pessoas
felizes…
Por estima a Bela, que sempre o dignificou e enalteceu,
Deus decidiu dar uma oportunidade a Cinderelo, mas ao mesmo tempo não podia
deixar passar em claro os seus actos demoníacos praticados.
Deus
transformou Cinderelo num jacaré e doravante seria esta a forma com que ele
viveria os seus dias. De Cinderelo passou a ser…Jacarelo!
Bela
ficou feliz e aceitou de imediato o seu irmão. Embora jacaré por fora, por
dentro continuava o Cinderelo e as suas memórias não se tinham apagado.
Jacarelo dividia as suas horas entre a cave e a piscina de casa e de vez em
quando deitava-se no relvado a apanhar uns raios de sol.
Por seu
lado, Cinderelo não estava totalmente satisfeito. Preferia ser humano e poder
tornar a disfrutar dos saborosos pratos confeccionados por Bela. Deixou de
poder comer esparguete por se tornar uma tarefa impossibilitada pela sua nova
fisionomia e nunca mais degustou a deliciosa sopinha de nabiças que comia no
passado. O preço a pagar pela sua malvadez foi passar a comer carcaças de animais,
sem qualquer guarnição, tempero ou acompanhamentos.
Um dia o seu
lado animal pesou na sua decisão e partiu para a vida selvagem. Pensou que a
família ficaria melhor sem ele e estava cansado de pedir a Bela que lhe
cortasse as unhas e que passasse o fio dental pelos seus 80 dentes. Estava na
hora de seguir o seu rumo e deixar sua irmã viver a sua vida sem a penosa tarefa
de cuidar dele.
Jacarelo fez-se
ao mar e as correntes levaram-no até às ilhas Berlengas. Pelo caminho, as suas
patas (ainda fedorentas) deixaram um rasto de epidémico que combinado com a
água salgada, fizeram com que algumas praias de Cascais e da Caparica ficassem
interditas a banhos, não tendo até ao momento as autoridades marítimas
descoberto a causa que motivou o desfecho mediático, desculpando-se com o
aumento de calor e toxinas, embora eu vos esteja a revelar a verdade em
primeira mão, sabendo de antemão que se a tornasse pública, a comunidade
científica duvidaria e me apelidaria de lunático.
Numa ilha, sem
ter quem lhe alimentasse e por uma questão de sobrevivência, Jacarelo foi-se
alimentando primeiro das gaivotas, depois dos pescadores e por fim dos turistas.
Com o pânico instalado cessaram as travessias de barco e a marinha bem como a
força aérea, temiam tornar-se vítimas do predador e invocaram razões de
segurança para não proceder ao salvamento dos turistas, que foram desta forma
abandonados à sua sorte e ao apetite voraz de um Jacaré com sentimentos.
Um por um,
foram digeridos por ele até ter sobrado apenas uma última refeição. Jacarelo
entrou no forte das Berlengas e depara-se com uma jovem apavorada escondida sob
uns colchões e enquanto afiava as mandíbulas, reconheceu-a. Embora ela visse
apenas a morte à sua frente, desconhecia que Jacarelo era Cinderelo e que ambos
viveram um grande amor na puberdade. Sob a cauda de Cinderelo pesava agora um
grande dilema.
Durante 3
dias permaneceu imóvel de boca aberta junto daquela que foi outrora o grande
amor da sua vida enquanto humano. Entre o amor e a sobrevivência, mais 3 dias
passaram e já muito débil, a racionabilidade esvaía-se e o amor não lhe dava os
nutrientes necessários. Contra a sua própria vontade, o seu corpo
desobedeceu-lhe e começou a avançar sobre a presa…
Deus
apercebeu-se da situação quando escutou as preces da jovem e pensou para
consigo próprio: “Este rapaz só me dá trabalho…eu já lhe trato da saúde…!”
Num estalar
de dedos ocorreu uma metamorfose e Jacarelo passou a...Tourelo.
A jovem
apavorada e imóvel há 6 dias solta uma valente gargalhada, abandona o forte
calmamente e da mochila deixada por um turista em fuga, fez uma chamada via telemóvel,
informando as televisões nacionais da nova realidade, do fim do perigo eminente
e estas acorreram de imediato, ávidas de uma reportagem em exclusivo.
Intrigam-se
vocês por que razão a rapariga temia um jacaré e não teve qualquer hesitação
perante um imponente touro de 600 Kg?
Tourelo não
era um touro igual aos demais. Dotado de um humor-negro desconhecido até então,
na criação, Deus tinha-lhe substituído os dois chifres por dois vibradores
cor-de-rosa, iguais aos que se encontra à venda em qualquer loja de artigos
sexuais…
A primeira
estação televisiva a chegar às Berlengas foi a TVI, que rapidamente fez
manchetes em horário nobre e convidou diversos comentadores para dissertarem
sobre este estranho fenómeno. Esta notícia ultrapassou fronteiras e a breve
trecho, Tourelo estava nas bocas de todo o mundo.
Desde esse
dia e com uma periodicidade anual, à semelhança das Festas de San Fermin,
apenas para homens de barba rija com coragem para fugir frente aos touros,
foram criadas as Festas das Berlengas, em que, ao contrário do que sucede em
Espanha, tornaram-se o santuário da comunidade homossexual mundial.
A TVI passou
a dedicar emissões especiais durante estas festas, apadrinhadas por José
Castelo Branco, com uma emissão no estúdio cúordenada por Manuel Luís Goucha,
com diversos convidados como Marco Paulo, Herman José, entre tantos ilustres da
sociedade nacional e com reportagem no local de Cláudio Ramos. Centenas de Chartérs de estrangeiros chegavam a
Portugal também com ilustres famosos como Ricky Martin ou Elton John eram
presenças habituais neste arraial gay.
Ao contrário
de Espanha, em Portugal os participantes corriam nus e era seu objectivo serem
eleitos por Tourelo para investir sobre si com os seus poderosos vibradores. Enquanto
Tourelo for vivo, o seu destino está traçado. No último fim-de-semana do mês de
Julho, será o foco de todas as atenções, Berlengas serão o centro do mundo.
Tourelo outrora Cinderelo, acabou por cumprir a
jura que fez perante Deus. Um dia faria muitas pessoas felizes…e realmente
fazia…toda a comunidade gay do
universo.
…E
Bela? Bela assim que tomou conhecimento da tragédia que desabou sobre o seu
irmão, foi vítima de uma onde de choque tão forte, que caiu desmaiada no chão.
Desde esse fatídico dia, Bela adormeceu…ganhou o
cognome de Bela Soneca entre os conhecidos e amigos, mas desengane-se quem
pensar que ela caiu num sono profundo e prolongadoO seu subconsciente, involuntariamente criou uma barreira psicológica sobre a sua vida real, de forma a bloquear as suas memórias desagradáveis, substituindo por memórias fantasiadas. Nessa batalha entre o seu consciente e o subconsciente, Bela dormia períodos de 23 horas diárias e apenas despertava por 1 hora, antes de tornar a adormecer e repetir o ciclo. Era nessa hora que a as suas fantasias ganhavam vida parecendo-lhe ser completamente reais e exaltando-se contra quem a contradissesse à medida que diariamente incarnava numa nova personagem













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