quarta-feira, janeiro 15, 2014

Bela & Cinderelo - A Saga Parvoíce


P

rovenientes do mesmo ventre e espaçados apenas por um punhado de ciclos lunares, dois irmãos eram o exemplo perfeito do antagonismo. Cinderelo e Bela partilharam a mesma herança genética, a mesma educação, os mesmos costumes, os mesmos ideais, mas sem motivo aparente, durante a adolescência, um viria a degenerar.
Se a Bela se tornou afável, bondosa, estimada por todos e dona de uma beleza atordoante, já o seu irmão…deve ter-se enganado no entroncamento e tomou o caminho oposto. Este desenvolveu uma personalidade complexa, mesquinha e obscura. Só pensava em bens materiais e não hesitava em usar qualquer tipo de expediente para atingir os seus intentos.
Cinderelo trancava-se na cave dias seguidos e a sua única companhia era o seu inseparável amigo portátil Sony Vaio. Passava o tempo a criar burlas informáticas para enganar os mais incautos internautas e apoderar-se das palavras-passe de contas bancária, para depois transferir para si todo o saldo. Para se recrear, publicava comentários desagradáveis no perfil de Facebook de pessoas que não conhecia e divertia-se a ler as respostas insultuosas que lhe replicavam. Tinha também um hábito irritante de criar janelas de publicidade nos sítios da internet mais acedidos e estava a aperfeiçoar a dificuldade em encerrá-las, só pelo prazer de aborrecer as pessoas.

O que comia ninguém sabia. A luz do sol raramente via e o contacto humano deixou de fazer parte do seu quotidiano, preferindo o recato e isolamento que a sua cave húmida, bolorenta e bafienta lhe proporcionavam. Lentamente estava a decompor-se numa criatura sinistra, que a pele pálida e a sua face magra lhe conferiam.
 
 
Da sua boca exalava um forte cheiro a enxofre, à sua passagem as flores murchavam, os pássaros tombavam inanimados das árvores, as crianças choravam e os vizinhos, por receio, escondiam as pratas, os cristais e até as suas filhas. A espiral decadente parecia cada vez maior e o seu auge era atingido nas noites ventosas, quando o vento soprava favoravelmente do cemitério, era audível sussurro dos defuntos clamando pelo seu nome: “Cindereeeeeeeelo, anda aqui beber umas ‘bejecas’ com a malta…”
Até as traças, os bichos-de-conta e as baratas recusavam-se a partilhar a cave com ele. Apesar de protestos, abaixo-assinados, greves e várias queixas ao Provedor dos Insectos, não lhes foi dado provimento, não lhes restando outra opção senão mudar de casa e ir parasitar outra família. Cinderelo tinha adquirido propriedades insecticidas…
A diferença física e comportamental entre Cinderelo e Bela e era cada vez mais vincada e fracturante. Só a sua irmã, com toda a sua pureza de coração e simplicidade continuava a gostar dele e estava até decidida a mudá-lo. Se um representava o Bem o outro tinha mergulhado no mundo das Trevas.


 

Numa das esporádicas subidas de Cinderelo à superfície, Bela aproveitou e fez descer em segredo uma empregada de limpeza qua havia contratado dias antes, para dar uma limpeza na cave e conferir alguma dignidade humana à mesma. Este pequeno gesto de amor fraterno mudou para sempre a vida de Cinderelo…
Ao regressar à cave, Cinderelo deparou com uma estátua de mármore de uma empregada de limpeza em tamanho real, com um par de sapatos na mão, aparentando estar a arrumá-los e ficou deveras intrigado com a origem daquele objecto, naquele preciso local, que não estava ali minutos antes.
Colocou várias hipóteses, formulou várias teses e passou à fase de experimentação. Sabendo de antemão que a chave do enigma girava em torno dos seus sapatos, decidiu espalhar meia-dúzia de pares de calçado seu em diferentes locais e no dia seguinte, ao analisar os resultados, estes não podiam ser mais esclarecedores:
 
Mediante a sua observação, chegou à evidente conclusão de que os seus sapatos deitavam um cheiro tão pestilento que, quem se aproximasse o suficiente para sentir o seu cheiro, ficava imediatamente petrificado. Ou no caso concreto, marmorizado…
Imediatamente a mente capitalista e maquiavélica de Cinderelo pensou em obter lucro com este seu dom artístico de “fazedor de arte em mármore”. Minutos depois, criou uma empresa na hora, encomendou umas dezenas de máquinas de corte de mármore e outros tantos camiões de transporte. Insonorizou as paredes, instalou as máquinas na cave e tornou-se proprietário de uma numerosa frota de camiões de carga.



Quanto à matéria-prima, já se sabe…Cinderelo comprava, calçava e deixava o seu sapatinho na via pública, para que este fizesse a sua ‘magia’ (qualquer semelhança com um conto infantil sobejamente conhecido, é pura coincidência…ou então não!). Cedo pela manhã, ainda os galos estavam de pijama, já Cinderelo fazia a recolha das estátuas de mármore para proceder ao ulterior seu desmantelamento
 
“Cinderelo Mármores, Unipessoal” tornou-se em poucos meses a maior exportadora mundial de mármores, fruto dos seus preços baixos e os clientes desconheciam que aquele chão que estariam a pisar, outrora teria sido uma pessoa, um animal ou na pior das hipóteses, as suas próprias queridas avozinhas desaparecidas dias antes…
Numa manhã como outra qualquer, ao passar junto a um quiosque, Bela reparou na capa da Revista Forbes e reconheceu o seu irmão. Cinderelo era o tema central da revista por ser o homem mais rico do mundo. Bela ficou incrédula…
 


Bela dirigiu-se imediatamente a casa, no intuito de obter explicações do seu irmão e ao abrir a porta da cave, observou abismada a gigantesca indústria de mármores que laborava mesmo por baixo da residência, sem que nunca se tivesse apercebido.
Perante a evidência, Cinderelo revelou o seu segredo, que chocou a sua irmã. Inconsolável, Bela finalmente percebeu porque toda a vizinhança no raio de alguns quilómetros tinha desaparecido, tornando-a juntamente com o seu irmão, os únicos habitantes da vila. Fez-lhe então um ultimato. Ou parava com aquele genocídio desumano ou nunca mais a voltaria a ver!
Cinderelo chorou, por momentos tornou a ser humano e chorou de novo. Sabendo que não conseguiria sozinho mudar de hábitos, voltou-se para Deus. Rezou e pediu ajuda divina, dizendo que estava muito arrependido e que estaria disposto a tudo para deixar de ser aquela criatura malévola e ter uma segunda oportunidade. Jurou perante de Deus que se lhe desse uma oportunidade, um dia faria muitas pessoas felizes…
Por estima a Bela, que sempre o dignificou e enalteceu, Deus decidiu dar uma oportunidade a Cinderelo, mas ao mesmo tempo não podia deixar passar em claro os seus actos demoníacos praticados.

Deus transformou Cinderelo num jacaré e doravante seria esta a forma com que ele viveria os seus dias. De Cinderelo passou a ser…Jacarelo!
Bela ficou feliz e aceitou de imediato o seu irmão. Embora jacaré por fora, por dentro continuava o Cinderelo e as suas memórias não se tinham apagado. Jacarelo dividia as suas horas entre a cave e a piscina de casa e de vez em quando deitava-se no relvado a apanhar uns raios de sol.

 
Por seu lado, Cinderelo não estava totalmente satisfeito. Preferia ser humano e poder tornar a disfrutar dos saborosos pratos confeccionados por Bela. Deixou de poder comer esparguete por se tornar uma tarefa impossibilitada pela sua nova fisionomia e nunca mais degustou a deliciosa sopinha de nabiças que comia no passado. O preço a pagar pela sua malvadez foi passar a comer carcaças de animais, sem qualquer guarnição, tempero ou acompanhamentos.
Um dia o seu lado animal pesou na sua decisão e partiu para a vida selvagem. Pensou que a família ficaria melhor sem ele e estava cansado de pedir a Bela que lhe cortasse as unhas e que passasse o fio dental pelos seus 80 dentes. Estava na hora de seguir o seu rumo e deixar sua irmã viver a sua vida sem a penosa tarefa de cuidar dele.
Jacarelo fez-se ao mar e as correntes levaram-no até às ilhas Berlengas. Pelo caminho, as suas patas (ainda fedorentas) deixaram um rasto de epidémico que combinado com a água salgada, fizeram com que algumas praias de Cascais e da Caparica ficassem interditas a banhos, não tendo até ao momento as autoridades marítimas descoberto a causa que motivou o desfecho mediático, desculpando-se com o aumento de calor e toxinas, embora eu vos esteja a revelar a verdade em primeira mão, sabendo de antemão que se a tornasse pública, a comunidade científica duvidaria e me apelidaria de lunático. 
Numa ilha, sem ter quem lhe alimentasse e por uma questão de sobrevivência, Jacarelo foi-se alimentando primeiro das gaivotas, depois dos pescadores e por fim dos turistas. Com o pânico instalado cessaram as travessias de barco e a marinha bem como a força aérea, temiam tornar-se vítimas do predador e invocaram razões de segurança para não proceder ao salvamento dos turistas, que foram desta forma abandonados à sua sorte e ao apetite voraz de um Jacaré com sentimentos.
Um por um, foram digeridos por ele até ter sobrado apenas uma última refeição. Jacarelo entrou no forte das Berlengas e depara-se com uma jovem apavorada escondida sob uns colchões e enquanto afiava as mandíbulas, reconheceu-a. Embora ela visse apenas a morte à sua frente, desconhecia que Jacarelo era Cinderelo e que ambos viveram um grande amor na puberdade. Sob a cauda de Cinderelo pesava agora um grande dilema. 
Durante 3 dias permaneceu imóvel de boca aberta junto daquela que foi outrora o grande amor da sua vida enquanto humano. Entre o amor e a sobrevivência, mais 3 dias passaram e já muito débil, a racionabilidade esvaía-se e o amor não lhe dava os nutrientes necessários. Contra a sua própria vontade, o seu corpo desobedeceu-lhe e começou a avançar sobre a presa…
 
Deus apercebeu-se da situação quando escutou as preces da jovem e pensou para consigo próprio: “Este rapaz só me dá trabalho…eu já lhe trato da saúde…!” 
Num estalar de dedos ocorreu uma metamorfose e Jacarelo passou a...Tourelo.
A jovem apavorada e imóvel há 6 dias solta uma valente gargalhada, abandona o forte calmamente e da mochila deixada por um turista em fuga, fez uma chamada via telemóvel, informando as televisões nacionais da nova realidade, do fim do perigo eminente e estas acorreram de imediato, ávidas de uma reportagem em exclusivo. 
Intrigam-se vocês por que razão a rapariga temia um jacaré e não teve qualquer hesitação perante um imponente touro de 600 Kg?
Tourelo não era um touro igual aos demais. Dotado de um humor-negro desconhecido até então, na criação, Deus tinha-lhe substituído os dois chifres por dois vibradores cor-de-rosa, iguais aos que se encontra à venda em qualquer loja de artigos sexuais… 
A primeira estação televisiva a chegar às Berlengas foi a TVI, que rapidamente fez manchetes em horário nobre e convidou diversos comentadores para dissertarem sobre este estranho fenómeno. Esta notícia ultrapassou fronteiras e a breve trecho, Tourelo estava nas bocas de todo o mundo.
 
Desde esse dia e com uma periodicidade anual, à semelhança das Festas de San Fermin, apenas para homens de barba rija com coragem para fugir frente aos touros, foram criadas as Festas das Berlengas, em que, ao contrário do que sucede em Espanha, tornaram-se o santuário da comunidade homossexual mundial. 

A TVI passou a dedicar emissões especiais durante estas festas, apadrinhadas por José Castelo Branco, com uma emissão no estúdio cúordenada por Manuel Luís Goucha, com diversos convidados como Marco Paulo, Herman José, entre tantos ilustres da sociedade nacional e com reportagem no local de Cláudio Ramos. Centenas de Chartérs de estrangeiros chegavam a Portugal também com ilustres famosos como Ricky Martin ou Elton John eram presenças habituais neste arraial gay.
Ao contrário de Espanha, em Portugal os participantes corriam nus e era seu objectivo serem eleitos por Tourelo para investir sobre si com os seus poderosos vibradores. Enquanto Tourelo for vivo, o seu destino está traçado. No último fim-de-semana do mês de Julho, será o foco de todas as atenções, Berlengas serão o centro do mundo.
Tourelo outrora Cinderelo, acabou por cumprir a jura que fez perante Deus. Um dia faria muitas pessoas felizes…e realmente fazia…toda a comunidade gay do universo.
 
…E Bela? Bela assim que tomou conhecimento da tragédia que desabou sobre o seu irmão, foi vítima de uma onde de choque tão forte, que caiu desmaiada no chão.
Desde esse fatídico dia, Bela adormeceu…ganhou o cognome de Bela Soneca entre os conhecidos e amigos, mas desengane-se quem pensar que ela caiu num sono profundo e prolongado
O seu subconsciente, involuntariamente criou uma barreira psicológica sobre a sua vida real, de forma a bloquear as suas memórias desagradáveis, substituindo por memórias fantasiadas. Nessa batalha entre o seu consciente e o subconsciente, Bela dormia períodos de 23 horas diárias e apenas despertava por 1 hora, antes de tornar a adormecer e repetir o ciclo. Era nessa hora que a as suas fantasias ganhavam vida parecendo-lhe ser completamente reais e exaltando-se contra quem a contradissesse à medida que diariamente incarnava numa nova personagem
 
 
 
 
 
Quando irão terminar as suas fantasias não se sabe, apenas se pode conjecturar que se o seu irmão tornasse à forma humana a sua mente provavelmente teria descanso e a Bela Soneca tornaria a ser simplesmente Bela…