terça-feira, janeiro 28, 2014

A "Frutaria"

Aparentava ser uma frutaria, mas na realidade em nada se assemelhava às demais frutarias…
No seu interior, um casal de irmãos eram simultaneamente os Guardiões e Executantes.

Ao fundo do estabelecimento duas portas. Por detrás da porta mais distante, estava oculta uma passagem secreta que conduziria os virtuosos ao Paraíso, sob a fachada de uma dispensa de arrumos. Na porta mais próxima, uma casa de banho encobria um tunel subterraneo, oculto sobre a sanita e que conduzia directamente ao Inferno, todos os nefandos.
Sob a capa dos seus sorrisos, estes irmãos diariamente a executavam uma missão divina. Em tenra idade haviam sido escolhidos pessoalmente por entre os mortais, pelo próprio Arcanjo Miguel, líder dos exércitos celestiais. Enquanto Miguel comandava o exército de Deus na luta contra Lúcifer e suas legiões de anjos revoltosos nos céus, os dois irmãos eleitos, agora adultos, executavam na Terra uma missão de fulcral relevância para o triunfo nesta contenda.
 

A irmã estava em constante ligação com os restantes Arcanjos, mediante o que aparentemente ao olho humano seriam vulgares livros de conteudo literário, mas eram na verdade livros celestiais, de onde recebia em tempo-real e sempre que se lhes afigurava necessário, linhas de orientação para a prossecução da missão que lhe foi confiada.

A sua tarefa específica consistia em operar a base de dados celestial que se camuflava com que se julgava ser uma comum máquina registadora. Inconscientemente e sem a minima suspeita, os clientes da frutaria estavam a ser seleccionados pelas acções que praticaram na sua vida e desse escrutínio resultaria a passagem pela porta celestial ou pela porta do purgatório.

O processo de triagem consistia em, após os clientes abastecerem-se de fruta necessária à sua subsistência e ao efectuarem o pagamento, iniciava-se a etapa de identificação. A irmã, com uma mão operava a aludida “máquina registadora” e com a outra, no momento em que estes pagavam, tocava suavemente numa de suas mãos, ao que, aparentemente e aos olhos destes, seria apenas o formalismo da entrega do troco devido. As suas mãos eram afinal o fio condutor  que ligava a pessoa e a máquina. Em fracções de segundo, eram apresentados os resultados no respectivo mostrador, codificados e impressos num talão em papel que continha os dados e cujo conteudo, caso não estivesse encriptado para se tornar imperceptível aos humanos, seria semelhante a um mini Curriculum Vitae pessoal, a apresentar junto do recenseador adstrito a ao local de destino das suas almas.

O irmão aguardava sempre de de pé, ao lado da sua irmã, adoptando sempre uma postura protectora perante esta e posicionava-se sempre junto da porta de acesso ao interior/exterior. Cabia-lhe a si fazer a escolta dos clientes à respectiva porta e impedir a fuga destes, caso tentassem sair pela porta principal do estabelecimento sem se submeterem ao destino que os próprio escolheram, com o somatório das suas acções e opções ao longo das suas vidas.

Com o avanço da tecnologia adveio o crescimento exponencial do numero de pessoas que preferiam viver uma vida virtual em substituição de uma vida real, raramente abandonando o conforto dos seus lares. Por constantes falhas de conectividade da rede wireless, tornava-se dificil supervisionar as suas acções desde o Paraíso, bem como atraí-los físicamente à frutaria. O irmão foi incumbido de uma missão extra e fora do horário de funcionamento comercial. Coube-lhe a a si seleccionar virtualmente as pessoas. Ele frequentava todas as redes sociais, salas de conversação, jogos de computador online e todo e qualquer sitio da internet onde pudesse entabular um diálogo com os restantes internautas, de forma a aferir da sua salvação ou condenação. Após verificar os requisitos em conformidade, enviava a listagem dos respectivos IP´s (vulgo: endereço electrónico) e o respectivo relatório à consideração divina.

Ao longo dos anos, os irmãos cumpriram sempre de forma irrepreensível a sua missão até que um dia algo de inesperado aconteceu…

Numa radiante manhã de verão, uma jovem de beleza alternativa entra no estabelecimento e o seu sorriso cativou imediatamente o irmão, ficando este mesmerizado e enfeitiçado com a sua beleza invulgar, de uma forma tão fulminante que o seu ritmo cardíaco entrou em hiperactividade. Nunca havia vivenciado tal sentimento na sua vida e por inexperiência, não sabia como lidar com o que sentia no imediato.

A base de dados  foi inequivoca e indicou um saldo negativo de boas acções à sua ninfa, o que provocou o brotar de um turbilhão de emoções repentinas que o seu cérebro não conseguia processar. Sob o olhar perplexo e censurador da sua irmã, que não encontrava explicação racional para o amor instantaneo que o seu irmão nutriu por aquele exemplar humano tão peculiar,  ele conduziu a jovem à porta de saída do estabelecimento em vez de a encaminhar para a porta que a conduziria ao Purgatório…

O seu acto não passou despercebido aos Arcanjos, que o convocaram e castigaram por inaceitável afronta aos desígnios destas entidades sagradas. Tendo como atenuantes a sua imaculada colaboração até então, cumulativamente com o facto da sua falha ter sido despoletada por um acto de amor, tão característico da imperfeição latente na natureza humana, decidiram  que este teria apenas de abandonar a forma humana, adoptar uma outra e deixaram a escolha à sua consideração.

Temendo ficar afastado da sua família, decidiu de imediato adoptar a forma de um telemóvel moderno, ficando deste modo sempre próximo da sua adorada irmã e em contacto permanente com a restante família. Embora boquiabertos com a sua opção, os Arcanjos viabilizaram-na…

Embora a sua irmã tenha agora de desempenhar sozinha a missão que era de ambos, é frequente vê-la com o telemóvel na mão, sorrindo e comunicando com o irmão, que embora diferente continua sempre presente…