A "Frutaria"
Aparentava ser uma frutaria, mas na realidade em nada se assemelhava às demais frutarias…
No seu interior, um casal de irmãos eram simultaneamente os Guardiões e Executantes.
Ao fundo do estabelecimento duas
portas. Por detrás da porta mais distante, estava oculta uma passagem secreta
que conduziria os virtuosos ao Paraíso, sob a fachada de uma dispensa de
arrumos. Na porta mais próxima, uma casa de banho encobria um tunel subterraneo,
oculto sobre a sanita e que conduzia directamente ao Inferno, todos os nefandos.
Sob a capa dos seus sorrisos,
estes irmãos diariamente a executavam uma missão divina. Em tenra idade haviam
sido escolhidos pessoalmente por entre os mortais, pelo próprio Arcanjo Miguel, líder dos
exércitos celestiais. Enquanto Miguel comandava o exército de Deus na luta
contra Lúcifer e suas legiões de anjos revoltosos nos céus, os dois irmãos
eleitos, agora adultos, executavam na Terra uma missão de fulcral relevância
para o triunfo nesta contenda.
A irmã estava em constante ligação
com os restantes Arcanjos, mediante o que aparentemente ao olho humano seriam
vulgares livros de conteudo literário, mas eram na verdade livros celestiais,
de onde recebia em tempo-real e sempre que se lhes afigurava necessário, linhas
de orientação para a prossecução da missão que lhe foi confiada.
A sua tarefa específica consistia
em operar a base de dados celestial que se camuflava com que se julgava ser uma
comum máquina registadora. Inconscientemente e sem a minima suspeita, os
clientes da frutaria estavam a ser seleccionados pelas acções que praticaram na
sua vida e desse escrutínio resultaria a passagem pela porta celestial ou pela
porta do purgatório.
O processo de triagem consistia em,
após os clientes abastecerem-se de fruta necessária à sua subsistência e ao
efectuarem o pagamento, iniciava-se a etapa de identificação. A irmã, com uma
mão operava a aludida “máquina registadora” e com a outra, no momento em que
estes pagavam, tocava suavemente numa de suas mãos, ao que, aparentemente e aos
olhos destes, seria apenas o formalismo da entrega do troco devido. As suas
mãos eram afinal o fio condutor que
ligava a pessoa e a máquina. Em fracções de segundo, eram apresentados os
resultados no respectivo mostrador, codificados e impressos num talão em papel
que continha os dados e cujo conteudo, caso não estivesse encriptado para se
tornar imperceptível aos humanos, seria semelhante a um mini Curriculum Vitae pessoal, a apresentar
junto do recenseador adstrito a ao local de destino das suas almas.
O irmão aguardava sempre de de pé,
ao lado da sua irmã, adoptando sempre uma postura protectora perante esta e posicionava-se
sempre junto da porta de acesso ao interior/exterior. Cabia-lhe a si fazer a
escolta dos clientes à respectiva porta e impedir a fuga destes, caso tentassem
sair pela porta principal do estabelecimento sem se submeterem ao destino que
os próprio escolheram, com o somatório das suas acções e opções ao longo das
suas vidas.
Com o avanço da tecnologia adveio o
crescimento exponencial do numero de pessoas que preferiam viver uma vida
virtual em substituição de uma vida real, raramente abandonando o conforto dos
seus lares. Por constantes falhas de conectividade da rede wireless, tornava-se
dificil supervisionar as suas acções desde o Paraíso, bem como atraí-los físicamente
à frutaria. O irmão foi incumbido de uma missão extra e fora do horário de
funcionamento comercial. Coube-lhe a a si seleccionar virtualmente as pessoas. Ele
frequentava todas as redes sociais, salas de conversação, jogos de computador
online e todo e qualquer sitio da internet onde pudesse entabular um diálogo
com os restantes internautas, de forma a aferir da sua salvação ou condenação.
Após verificar os requisitos em conformidade, enviava a listagem dos respectivos
IP´s (vulgo: endereço electrónico) e o respectivo relatório à consideração
divina.
Ao longo dos anos, os irmãos
cumpriram sempre de forma irrepreensível a sua missão até que um dia algo de
inesperado aconteceu…
Numa radiante manhã de verão, uma
jovem de beleza alternativa entra no estabelecimento e o seu sorriso cativou
imediatamente o irmão, ficando este mesmerizado e enfeitiçado com a sua beleza
invulgar, de uma forma tão fulminante que o seu ritmo cardíaco entrou em hiperactividade.
Nunca havia vivenciado tal sentimento na sua vida e por inexperiência, não
sabia como lidar com o que sentia no imediato.
A base de dados foi inequivoca e indicou um saldo negativo de
boas acções à sua ninfa, o que provocou o brotar de um turbilhão de emoções
repentinas que o seu cérebro não conseguia processar. Sob o olhar perplexo e
censurador da sua irmã, que não encontrava explicação racional para o amor
instantaneo que o seu irmão nutriu por aquele exemplar humano tão
peculiar, ele conduziu a jovem à porta
de saída do estabelecimento em vez de a encaminhar para a porta que a
conduziria ao Purgatório…
O seu acto não passou despercebido
aos Arcanjos, que o convocaram e castigaram por inaceitável afronta aos desígnios
destas entidades sagradas. Tendo como atenuantes a sua imaculada colaboração
até então, cumulativamente com o facto da sua falha ter sido despoletada por um
acto de amor, tão característico da imperfeição latente na natureza humana,
decidiram que este teria apenas de
abandonar a forma humana, adoptar uma outra e deixaram a escolha à sua
consideração.
Temendo ficar afastado da sua
família, decidiu de imediato adoptar a forma de um telemóvel moderno, ficando
deste modo sempre próximo da sua adorada irmã e em contacto permanente com a
restante família. Embora boquiabertos com a sua opção, os Arcanjos
viabilizaram-na…
Embora a sua irmã tenha agora de
desempenhar sozinha a missão que era de ambos, é frequente vê-la com o
telemóvel na mão, sorrindo e comunicando com o irmão, que embora diferente
continua sempre presente…





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